Quando a Umbanda chama

Quando a Umbanda chama

Quando a Umbanda chama – Parte I

Trago na lembrança os cheiros, sons e sensações de quando, com cerca de cinco anos de idade, acompanhava meus pais e irmão à “Tenda Espírita Mensageiros da Paz – Aramara” que me despertava toda a curiosidade de criança ao assistir os lindos rituais de abertura e fechamento das giras as quais meus pais participavam como médiuns de atendimento da casa.

Lá, durante os rituais, é que me sentia seguro e acolhido, sem nem mesmo entender o porquê.

Achava curioso ver todo o zelo com que meus pais preparavam seus uniformes brancos com cordões amarrados à cintura, horas antes de sairmos de casa para as giras. Me sentia feliz por ver o brilho do amor em seus olhos e o propósito de doação ao qual se entregavam nestas datas.

A entidade de luz que orientava os trabalhos da casa era o Mestre Zartur, da linha do oriente, e seu nome vinha bordado em letras douradas no lado esquerdo do uniforme de cada obreiro, como a cobrir-lhes o coração.

Durante as giras, eu me pegava observando os movimentos e expressões de cada um dos médiuns ao imaginar o que poderia estar se passando em seus pensamentos enquanto atendiam ou aguardavam algum consulente.

Como poderia aquela senhora curvada, de pele enrugada e com seus cabelos brancos, tão simpática e sorridente, de repente se assemelhar a um gigante ao lançar aqueles brados impressionantes de caboclo, enquanto expelia a fumaça de um enorme charuto de seus pulmões, ao redor do corpo dos assistidos, quando sequer fumava em sua vida corriqueira?

Acho que era justamente isto que me despertava a curiosidade, nada daquilo era corriqueiro, se tratava de um universo à parte, o qual nem todos se permitem, ou estão destinados a participar.

E apesar do relatado até aqui, e dos encantos semiocultos que ali orbitavam, eu mesmo fui um dos que resolveram, por muito tempo, virar as costas para o mundo da umbanda.

Não que não acreditasse, mas por me deixar dominar por este sentimento que é o principal responsável pela maioria das falhas humanas, o medo. Pois em casa, quando só, no escuro de meu quarto, as coisas eram bem diferentes.

Não havia uma semana sequer na qual eu conseguisse atravessar todos os dias sem passar pelo pavor das visões de seres horrendos e carregados de energia deletéria que me encaravam enquanto eu sentia o veneno da paralisia ir dominando lentamente todo meu sistema nervoso.

Nestes momentos, a única coisa que conseguia fazer para me libertar da situação era recitar algum rezo ensinado por meus pais, o que na maioria das vezes, talvez devido ao estado de medo em que normalmente me encontrava, demorava alguns minutos para que fizesse o efeito esperado.

Como à época não conhecia mais ninguém que passasse pelas mesmas situações, cheguei a considerar que talvez eu estivesse passando por algum distúrbio mental, e isto, de certa maneira como operava na cabeça de uma criança, cobrou seu preço.

Acabei me tornando uma criança medrosa e pouco sociável, com poucos amigos e muito bem selecionados, pois precisava me sentir seguro quanto a não ser julgado de forma rígida pelos coleguinhas por meu comportamento, muitas vezes mais retraído do que o normal.

Mais tarde, quando já entrando na idade da puberdade, meus pais queriam que eu me desenvolvesse na espiritualidade através das aulas de doutrina que ocorriam lá naquele mesmo templo, o qual chamavam de forma abreviada de “Aramara”.

De início me animei e comecei a participar das aulas, e digo que ali até que cheguei a aprender algumas coisas um tanto empolgantes a respeito dos reinos sutis de Aruanda, dos Guias e Orixás, e do propósito desta caminhada, mas como as visões até então nunca haviam cessado, acabei me afastando por assumir que se com isso eu ampliasse ainda mais minha mediunidade, talvez minha perturbação nunca iria ter um fim.

Poucos meses após haver abandonado totalmente as aulas, agora já com uns quatorze anos de idade, me encontrava em uma manhã de final de semana aproveitando a última hora de sono antes de me levantar quando, uma vez mais, começaram os efeitos que sempre acarretavam o tipo de experiências sensoriais horripilantes das quais queria me desvencilhar.

Começou com a paralisia do sono e a sensação de congelamento gradual do sangue e de todos os nervos, músculos e tendões do corpo, seguido por uma espécie de névoa mental (na falta de palavras melhores para expressar a situação) que ia se apossando de todos meus sentidos.

Como sempre fazia, logo iniciei com as orações as quais apenas com muito esforço conseguia manter o foco mental para ir repetindo-as, uma após a outra, até conseguir me desvencilhar do que quer que fosse que estivesse ali a roubar meus sentidos.

Não que tivesse sido a experiência mais intensa das que já tive, mas desta vez foi tão forte quanto algumas poucas, e tão logo recobrei parte de minhas forças, me levantei para ir correndo ao quarto de meus pais pedir por ajuda.

Porém, o que ocorreu a seguir desta vez foi diferente: mal atravessei a porta de meu quarto e tive uma nova paralisia. Me encontrava agora em pé, totalmente paralisado e, sem conseguir sequer emitir um grito pedindo ajuda, ouvi uma voz masculina bem forte e gutural que gritou dentro de minha cabeça dizendo: ‘AGORA VOCÊ VAI ME OUVIR!!!’

Não preciso dizer que isso só fez aumentar meu pavor e, em meio a um movimento interno muito mais intenso de clamor por libertação, consegui finalmente recobrar os sentidos e sair em busca do benzimento que ansiava receber de meus pais, o qual certamente me colocaria de volta ao meu eixo central

Após esta data houve ainda algumas poucas experiências desta natureza, mas agora bem menos intensas e muito mais espaçadas no tempo umas com relação às outras. Comecei então a acreditar que poderia viver uma vida mais próxima da que todos ao meu redor pareciam estar vivendo.

Doce ilusão, pois apesar de agora estar conseguindo viver algo próximo do normal, crescendo nos estudos e trabalho, formando família, conquistando bens e fazendo festas e viagens, as marcas que ficaram naquela criança nunca seriam esquecidas, e no decorrer dos anos a sede que se instalou então só foi aumentando em tamanho.

Por não mais suportar ou querer lidar com o vazio que sentia, comecei uma busca totalmente desestruturada por conhecimento a qual seguiu por muitos anos de minha vida. Consumindo livros e mais livros que tratavam da espiritualidade, linhas de pensamento, religiões e culturas por variados ângulos e pontos de vista, tive aulas de meditação, conheci a Gnosis, tive uma breve passagem pela maçonaria e na sequência pelo rosacrucianismo, mas sem me aprofundar realmente em nada do que me envolvia uma vez que não encontrava saciedade em nenhuma linha de pensamento filosófico ou religião. Até que finalmente percebi que o que estava buscando fora sempre esteve dentro de mim.

Neste momento senti que precisava de algo a me reconectar a quem realmente sou, algo que me conectasse a alguma prática para alavancar uma transformação de dentro para fora. Vi também que estava vivendo uma ilusão, havia vestido as máscaras que a sociedade exige que coloquemos para nos encaixarmos aos padrões de “normalidade” e já não conseguia mais me reconhecer ao espelho.

E foi aí que me voltei para a Umbanda Sagrada? Não, ainda não, mas foi aí que reencontrei o fio do caminho que me conduziria a ela.

Continua na Parte II na próxima edição….


Relatos TSA é o autor coletivo do nosso jornal, dedicado a compartilhar histórias vividas ou contadas em nosso espaço sagrado. Seja para narrar momentos de fé, aprendizados espirituais ou manifestações marcantes, este autor simboliza as vozes que ecoam no terreiro, conectando cada relato à essência da espiritualidade e da tradição.