
A Lança e o Perdão
A Lança e o Perdão
Você já se pegou em um destes momentos em que a vida te surpreende com alguma experiência tão surreal que acaba te deixando em estado de suspensão temporária dos sentidos, sem esboçar quaisquer reações, sentimentos ou emoções, e somente ao voltar a si é que percebe que embora, por alguns instantes preciosos a mágica tenha se feito presente, você não foi capaz de reter o seu encanto?
Pois é. E é sobre uma experiência como estas e vivenciada por mim dentro de um Terreiro de Umbanda que venho aqui compartilhar com vocês este texto.
Este fato ocorreu quando o ano de 2022 já ia se findando. À época eu participava das Giras de um terreiro próximo à minha casa como Cambone e não poderia dizer que já tivesse tido alguma experiência significativa no universo da Umbanda.
Havia cambonado um ou outro Médium algumas poucas vezes e, como tínhamos mais Cambones em desenvolvimento do que Médiuns para assistir, não era incomum que eu ficasse disponível para o que a Mãe de Santo da casa chamava de “fazer a firmeza”, ou seja, firmar (ou limpar) a cabeça na intenção de dar sustentação energética a qualquer um que dela necessitasse durante a Gira.
Vale enfatizar que, como a maioria dos que se encontram no início de suas caminhadas nesta religião, me encontrava naquele estado de prontidão, ansiedade e angústia, sempre tentando adivinhar quando e como alguma entidade iria finalmente bater à porta de minha percepção sempre aguçada. E a Mãe de Santo, com imensa paciência, não se cansava de repetir que só iria acontecer quando eu parasse de querer e resolvesse apenas me entregar.
Bem, afinal é como dizem por aí né? “Água mole, pedra dura, tanto bate até que fura”.
E foi assim que aconteceu, estava eu em pé, em meio à uma Gira de Caboclos em uma noite de sexta-feira, sem um Médium para assistir e, portanto, ajudando com a firmeza da Gira. Entendi que as expectativas que ficava alimentando quanto a me tornar médium de incorporação somente serviam para ocupar minha mente com projeções fantasiosas ao invés de liberá-la para o que realmente importava, que era poder me doar por inteiro e com as ferramentas que possuía no momento. Se era a firmeza que tinha de fazer naquele momento, então iria dedicar-me a fazê-la da maneira correta, limpar os pensamentos e deixar que as entidades e a energia fluíssem através de mim, exatamente como a Mãe recomendava.
Os Ogãs se mantinham firmes na Curimba, mas ainda assim, alguns minutos após haver me colocado neste estado praticamente meditativo, mantendo os olhos fechados, simplesmente deixei de ouvir os pontos que tocavam energicamente e passei a perceber uma presença à minha direita.
Não pude ver seu rosto e senti que também não tinha permissão para voltar meus olhos para ele, mas como que um pensamento ou ideia que fora plantado em minha mente, tive a certeza de se tratar de um Caboclo, e logo no momento seguinte ele já me convidava a acompanhá-lo à algum destino não revelado.
Senti sua força e propósito puras de guerreiro que sabe o que quer e tem uma missão a cumprir e, sem processar qualquer pensamento, apenas aceitei o convite, pois sentia-me confiante.
Imediatamente me vi em meio à mata fechada seguindo em fila à diversos outros Caboclos que em poucos instantes já alcançavam a margem de um rio de correnteza forte. Tive também a certeza de me encontrar em alguma região da selva amazônica.
Ao invés de parar, ou tomar outro rumo, a fila continuou seguindo em frente até que os Caboclos que à encabeçavam começaram a adentrar o rio até se encontrarem totalmente submersos em suas águas.
Fiquei inseguro pois meu senso natural de autopreservação indicava que poderia não ser uma boa ideia submergir para junto deles e acabar por me afogar.
Instintivamente voltei minha atenção ao Caboclo que havia me feito o convite de acompanhá-los e que se mantinha ao meu lado desde então, e sem que me desse a oportunidade de falar qualquer coisa logo foi dizendo que não haveria risco algum, bastava manter a mesma confiança que já havia depositado nele que tudo ficaria bem. Disse também que a experiência à qual me destinava não era esta, mas era necessário que eu tomasse um bom banho de rio para me purificar e estar preparado para o que realmente me aguardava naquela noite.
Continuei seguindo a fila e caminhei totalmente submerso pelo leito fundo do rio até a outra margem a qual não se encontrava muito distante da margem por onde havíamos entrado.
Logo ao sairmos do rio o Caboclo que me guiava perguntou se eu me sentia preparado para o que iria vivenciar, não revelou o que iria ocorrer, mas disse que eu deveria ser forte e controlar minhas emoções e sentimentos independente do que acontecesse comigo.
Uma vez mais, apoiado na força emanada por ele e no sentimento de confiança que emergia sem saber ao certo porquê, eu disse que estava pronto e que iria seguir o que ele havia determinado.
Em um piscar de olhos me vi vestido apenas com algum tipo saia curta de couro cru a me tapar as partes íntimas, alguns adereços de cordões e penas em meus braços e tornozelos e um grande cocar que cobria o topo de minha cabeça e se estendia por minhas costas.
Era noite e estava só, em pé, segurando uma lança na posição vertical com a mão esquerda e ao lado de uma fogueira no centro de uma tribo com diversas ocas ao meu redor. Não sabia onde exatamente esta tribo estava localizada, mas tive a certeza de que já não me encontrava mais na selva Amazônica.
Logo avistei um indivíduo se aproximando com vestimentas similares às que eu trajava, também segurando uma lança em suas mãos, mas sem nada a cobrir-lhe a cabeça.
Embora adulto, era uns vinte centímetros mais baixo que eu e suas feições lembravam muito os atuais aborígenes australianos.
Ele foi se aproximando, e ao chegar bem próximo a mim, olhando fundo em meus olhos e sem dizer palavra alguma, em uma fração de segundo simplesmente empunhou sua lança e introduziu sua ponta no lado esquerdo de meu peito, logo abaixo do coração.
Neste momento, emiti um urro de dor que me fez retornar ao presente e perceber que estava de volta em meio à gira e que havia, de fato, me curvado e urrado de forma audível também nesta dimensão.
Olhei meio que constrangido para os lados e, como vi que ninguém havia percebido minha esquisitice (ou ao menos fingiam bem), fechei novamente os olhos e lá estava o Caboclo ao meu lado, que foi logo dizendo: “Ainda não acabou, chegamos à etapa com maior importância desta jornada. Terá de mostrar o quanto está pronto para vencer a mágoa e o orgulho que carrega aí dentro e considerar o perdão como uma chave para a libertação. Devemos prosseguir?”
Embora estas palavras me dessem uma pista do que viria à frente, me encontrava em um processo muito mais de seguir o fluxo do que de raciocinar, era como se eu tivesse tido a oportunidade de me desligar da parte de mim que pensa, sente e reage para somente fluir sendo quem realmente sou quando não estou sob o jugo do ego.
Sentia também que estava vivenciando uma circunstância única que nunca mais poderia se repetir, mas que valia ser vivida.
Então uma vez mais e sem pestanejar, concordei em seguir em frente.
Mais um flash e já me encontrava junto ao Caboclo, agora a me guiar por dentro de uma caverna um tanto fedida e iluminada apenas pela luz de uma tocha que ele carregava em sua mão direita.
Caminhávamos com certa dificuldade devido à água carregada de lodo que quase alcançava nossos joelhos.
Suas paredes eram de pedras misturadas com terra e lodo e eram bastante úmidas, a água por elas não parava de escorrer.
O Caboclo parou próximo a uma destas paredes e vi que a altura de mais ou menos um metro do chão estas formavam uma espécie de nicho para dentro das mesmas onde se encontravam diversas criaturas em posição de cócoras e que se mostravam um tanto incomodadas com a luz proveniente da tocha ou, talvez, com nossa presença naquela caverna.
Ele me pediu que apenas observasse por alguns instantes e logo uma das criaturas saiu de dentro do nicho permanecendo de cócoras à minha frente.
Apesar de extremamente sujo e uma aparência meio que bestializada, percebi que me encontrava novamente em frente ao mesmo indivíduo que na cena anterior havia encerrado minha vida com a sua lança.
Normalmente minha reação natural teria sido a de, no mínimo, tentar tirar satisfações com ele para entender o porquê de sua revolta e atitude contra mim, mas a verdade é que ao vê-lo na situação em que se encontrava e o sofrimento que isto devia estar lhe causando, a luz da compaixão acabou por se acender dentro de mim, o que disparou também a engrenagem do perdão.
Sem saber ou mesmo dar importância ao motivo que me impulsionou a isto, em prantos comecei a pedir-lhe perdão pelo que quer que fosse que eu tivesse eventualmente feito contra ele para que me odiasse ao ponto de tirar a minha vida.
Pedi também que perdoasse a si mesmo, pois eu também o havia perdoado no momento em que o revi naquela caverna bem como estava perdoando a mim mesmo por qualquer mal que tenha feito a ele e a mim.
Terminei por explicá-lo que somente desta forma estaríamos libertos um do outro para seguirmos nossos caminhos com leveza e paz de espírito.
Em resposta a isto, ele somente emitiu um grunhido, similar ao que os gatos domésticos emitem quando estão irritados ou acuados, e retornou para dentro do nicho de onde havia saído.
Com isto me senti um tanto frustrado, pois embora tenha sentido a descarga de um grande pesar que carregava comigo há muito tempo, me pareceu que não havia conseguido tocá-lo na mesma proporção em que fui tocado por aquela experiência.
O Caboclo, sensibilizado com minha angústia, disse que não deveria me preocupar mais com isso, pois a parte que me era cabida naquele momento eu havia cumprido como esperado e que embora uma semente houvesse sido plantada, era necessário deixar que o tempo passasse a agir para que ela viesse a germinar e dar frutos.
Trocamos um sentimento de gratidão e tão logo nos despedimos já me encontrava de volta em pé em meio à gira que seguia, agora com lágrimas nos olhos e muito feliz pela oportunidade que me foi concedida pelo pai Olorum, pois além de haver recebido de forma muito clara um ensinamento sobre o poder libertador do perdão, acredito ter se tratado também de algum tipo de resgate cármico de vida passada pelo qual fui submetido dada a intensidade e profundidade da experiência.
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