
A Linha dos Malandros
Opiniões, pensamentos e mesmo sentimentos antagônicos são padrões comuns observados em muitos irmãos e irmãs, filhos de santo ou não, quando o assunto colocado à mesa diz respeito a Linha dos Malandros na Umbanda.
Esta linha, de certa maneira até mesmo polêmica, tem o poder de despertar alguns pré-conceitos enraizados em nossa sociedade uma vez que o próprio conceito de “malandragem” remete a atributos muitas vezes associados a determinados desvios de conduta.
E justamente por este motivo é importante que nos coloquemos em um estado sincero de não julgamento ao navegarmos através das palavras que seguem. Desta forma, acreditamos ser possível trazermos à luz do conhecimento a proposta e alguns dos atributos desta querida, porém mal compreendida linha de trabalhadores da luz.
O conceito de Malandro (ou Trickster, em inglês) é visto como um arquétipo humano pelo renomado psiquiatra, e um dos pais da psicanálise, Carls Gustav Jung.(1)(2) Jung traz uma proposta em que, dentre diversas outras definições, associa o “Trickster”, ou Malandro, com os mais variados personagens, tipos de personalidades, elementais e até mesmo seres mitológicos presentes em nossa cultura desde tempos imemoriais, que vai desde Xamãs curadores, passando por Duendes, Hermes, Mercúrio, Dunga (da Branca de Neve), Palhaços, Bobos da Corte, e tantos outros, alguns com traços considerados mais positivos, outros mais negativos. Ou, conforme as palavras do próprio autor: “é uma personificação de traços de caráter, às vezes piores e às vezes melhores do que os apresentados pelo eu.” (2)
Ainda, de acordo com Melaine Pilatto Gonçalves, em seu artigo “Palhaço e Trickster: A performance e o jogo como encontro com o outro e consigo mesmo”(3), Jung aborda o “Trickster” como alguém que tem a capacidade de promover o revés da moeda contra os poderosos, pregar peças e ser fonte de reviravoltas, transformação e mudança.
Muito mais pode ser dito neste contexto, e incentivamos que os leitores realizem suas próprias pesquisas neste sentido. Poderão encontrar informações fascinantes a respeito, mas voltemos ao nosso foco principal e vamos, agora, abordar o assunto sob a luz da Umbanda.
E não há entidade na Umbanda para dar contexto à Linha dos Malandros que não o próprio Zé Pelintra, não é mesmo?
Há uma certa aura de mistério ao abordarmos as origens de Seu Zé Pelintra (ou Seu Zé para simplificar) devido a existência de algumas lendas ao redor deste personagem.
É de conhecimento geral que sua encarnação se deu em Pernambuco, porém há uma lenda que o coloca como José dos Anjos, que, nascido em Bodocó, próximo a cidade de Exu, estado de Pernambuco, mas tendo se mudado ainda pequeno para Recife com sua mãe e seus muitos irmãos, vive uma vida um tanto sofrida na região do porto devido a morte de sua mãe enquanto ainda criança.
Já uma outra lenda o apresenta como José Gomes da Silva que, nascido também em uma cidade do interior de Pernambuco, desde cedo aprende a jogar o carteado e cresce como uma pessoa briguenta, bastante sagaz, um malandro.
Aqui temos, por um lado José dos Anjos, um rapaz sofrido mas bondoso e, do outro, José Gomes da Silva, que usa da malandragem para conseguir o que quer, representando assim as duas facetas do arquétipo de Seu Zé.
Nenhuma das lendas identifica como se deu o falecimento de Seu Zé, no entanto, uma outra questão que cabe mencionar é que, tendo sido um “Mestre Juremeiro”, ele traz o mistério de transitar nas duas fumaças da Jurema, a da direita e a da esquerda. Porém, para se tornar um Mestre da Jurema, é necessário encantar-se (tornar-se encantado), de forma que ao fazer a transição da vida para a morte, seu corpo não é encontrado e é neste ponto que surge a entidade Zé Pelintra.
Então, apesar de haver um túmulo de Seu Zé Pelintra, sob um arbusto de Jurema Preta, na cidade de Alhambra em Pernambuco, dizem se tratar apenas de um túmulo simbólico, pois de sua morte ninguém sabe.
O culto da Jurema, em que Seu Zé se fez Mestre, se deu através da fusão de saberes tanto do povo indígena Kariri-Xocó como de Europeus provenientes principalmente de Portugal que, em ato de fuga durante o período da inquisição devido aos seus conhecimentos e práticas magísticas através da religião natural ou mesmo da bruxaria comumente praticados naquele continente, acabaram por encontrar refúgio na região nordeste do Brasil.
Por esta questão, o culto da Jurema é considerado como um dos últimos, senão o último receptáculo do conhecimento original de magia europeu, trazendo toda a sua “ciência” em fusão com os profundos conhecimentos dos Kariri-Xocó e, de quebra, ensinamentos herdados da Igreja Católica e do Cristianismo pelos europeus.
Existem diversas variedades da planta Jurema, inclusive sendo considerada uma delas a própria “sarsa ardente” que, na Bíblia, traz a Moisés a revelação sobre sua missão de guiar os israelitas para Canaã (Êxodo).
Já como culto iniciático discreto, seus conhecimentos e práticas se estabelecem em diversas camadas que vão sendo reveladas e absorvidas pelos iniciados conforme adentram em seus mistérios. Este ato de iniciação é referenciado como “ser tombado na Jurema”, e se trata de um ritual que hoje, infelizmente, pouquíssimos “Mestres Juremeiros” têm o conhecimento e estão aptos a conduzir.
Com isso, queremos deixar claro que apesar de ser comum que, ao observarmos Seu Zé ou qualquer outra entidade da linha dos Malandros com seu gingado e irreverência durante o ritual de Umbanda, considerarmos se tratar de algo leve, muitas vezes até engraçado, ali se encontram na verdade entidades iniciadas em sabedoria ancestral profunda de magia atuando sob o Trono Zé Pelintra (também conhecido como Trono da Jurema Preta) que, apesar das aparências, sabem exatamente como atuar para alavancar a cura e libertação aos necessitados.
Para reforçar este entendimento, devemos lembrar que Seu Zé tem também esta característica de trafegar através de ambas as linhas da direita e da esquerda da Umbanda o que, por si só, já demonstra a amplitude de sua sabedoria e poderes.
Como Seu Zé, existem outras entidades na Umbanda que atuam em ambas as bandas, como exemplo temos Maria Quitéria que pela esquerda é Pombo Gira mas que aparece também na linha dos Baianos e até mesmo de Preto Velhos.
No entanto, no caso de Seu Zé, quando atua na linha da esquerda, não significa que ali está um Exu Zé Pelintra, mas o Mestre Zé Pelintra atuando na vibração de Exu. O mesmo quando ele aparece como Zé Pelintra das Almas, não há o Preto Velho Zé Pelintra mas o Mestre atuando naquela linha de trabalhos.
Então, Seu Zé foi, em vida, um iniciado Mestre Juremeiro que, em determinado momento após seu desencarne, começa a aparecer atuando pela esquerda nos terreiros de Macumba do Rio de Janeiro, onde ganhou bastante popularidade devido às suas características com as quais a população encontrava identidade.
Mais tarde ele começa a aparecer também em casas de Quimbanda, não para realizar maldades, mas para auxiliar as pessoas que ali iam procurar por ajuda, mas que necessitavam de sua faceta mais densa atuando em suas vidas.
Na Quimbanda ele ficou ainda mais conhecido por ser reconhecido como uma entidade que trazia sorte no jogo, no amor e na vida.
Seu Zé ganhava cada vez mais popularidade por onde se apresentasse devido ao seu arquétipo que tanto se identifica como símbolo da malandragem brasileira, focado, naturalmente, na alegria, irreverência e felicidade de nosso povo enquanto transita na periferia e cuida de todos sem preconceito, sem julgamentos, e sua incorporação começa a ocorrer em terreiros de diversos outros estados brasileiros.
Mais tarde, começa a aparecer também na Umbanda, agora em giras de direita, em São Paulo, através da linha dos Baianos. Talvez por se tratar de uma linha que traz o arquétipo formado por Pais e Mães de Santo provenientes do Candomblé da Bahia, e também por seu comportamento alegre que acabou se adequando bem a esta linha.
E foi a partir de então que a formação da falange dos Malandros que seguiam o arquétipo de Seu Zé começou a se consolidar.
O mistério Zé Pelintra se mostrou tão flexível, abrangente e acolhedor que muitas entidades que não conseguiam se encaixar em nenhuma das outras linhas da Umbanda acabavam encontrando lugar em sua falange, pois das diversas características deste arquétipo, acabavam por se encaixar em uma ou outra e assim encontrar um caminho para atuarem e se desenvolverem através dos trabalhos. O próprio Zé Pelintra dizia em alguns momentos que trabalhava em todas as linhas da Umbanda, o que acabava muitas vezes por se tornar assunto polêmico uma vez que isto não seria possível ou permitido no culto da Jurema onde se originou. No entanto, é justamente por esta origem vegetal no culto da Jurema que Seu Zé traz também uma certa intimidade com a linha de Caboclos da Umbanda.
Os Malandros e Malandras que passaram a integrar a falange de Seu Zé Pelintra muitas vezes são espíritos que caíram, de fato, na malandragem, mas que através de seus erros e de todo sofrimento que causaram a outros, mas principalmente a si mesmos, aprenderam a transmutar o seu estado vibracional para que pudessem retornar ao caminho da evolução. Por isso, muitas vezes, têm muito mais a ensinar aos necessitados do que quem nunca caiu e, portanto, não precisou se levantar.
Assim como ele traz diversos elementos consigo, dentre eles o maracá, o terço, o punhal e a bengala, ele também apresenta diversas facetas, como aquele boêmio que está sempre alegre, sambando, risonho, ou talvez mais quieto, mais velhinho e assim por diante, pois assim é o mistério de Zé Pelintra, bem como dos Malandros e Malandras que se encontram sob a irradiação de seu Trono, cultivam a felicidade, independente do contexto apresentado. São aqueles que não se rendem às amarguras da vida, ao invés, as driblam sambando, pois entenderam que a felicidade é cultivada dentro de cada um, não algo que se ganha como um prêmio de loteria.
Seu Zé Pelintra, Mestre Juremeiro, assentado em um Trono que carrega sabedoria magística ancestral e que tem o poder de atuar nas bandas da esquerda e da direita, ainda assim, é também conhecido como “O Doutor dos Pobres”, pois ao invés de se assoberbar com o poder que possui e se colocar como um mestre inalcançável, escolhe se aproximar dos aflitos que abrem seus corações ao seu Trono e convidá-los a caminhar, seja através dos conselhos, receitas de garrafadas, mandingas/orações ou dos encantamentos que dá, pois sabe que o somente é possível evoluir se houver também movimento.
Muito ainda poderíamos expor a respeito de Seu Zé e da linha dos Malandros, a simbologia de seus elementos como a navalha e o punhal que servem para cortar laços energéticos negativos, o terço usado para o benzimento que tem suas origens no universo católico europeu e tantos outros, mas uma questão que não poderia faltar neste texto é o significado da palavra “Pelintra”, que remete a “vestir-se bem sem ter nada”.
Com isto creio que conseguimos entender um pouco da essência de Seu Zé e a Linha dos Malandros na Umbanda. São aqueles que se vestem bem mesmo sem terem nada, pois já sabem que nada precisam para se revestirem da felicidade e da Luz de nosso Pai Criador. Nos trazem o ensinamento de que ao invés de abraçarmos o sofrimento, devemos sorrir e gingar mesmo face às adversidades, à melhor maneira dos Malandros.
Diversas referências apresentadas neste texto foram extraídas do material do curso “ZÉ PELINTRA E A LINHA DOS MALANDROS”, desenvolvido e ministrado por Marcel Oliveira e apresentado por Rodrigo Queiroz.
Referência Bibliográfica:
- JUNG, Carl Gustav. Quatro Arquétipos: Mãe, Renascimento, Espírito e Trickster.
- JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.
- GONÇALVES, Melaine Pilatto. Artigo: “Palhaço e Trickster: A performance e o jogo como encontro com o outro e consigo mesmo. Disponível em:
https://seer.ufu.br/index.php/ouvirouver/article/download/48951/28489/222098 - Curso Online ZÉ PELINTRA E A LINHA DOS MALANDROS, desenvolvido e ministrado por Marcel Oliveira na plataforma Umbanda EAD
Ilustração: Fabiana Quarterola
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