Eu nasci em berço de palha – um texto sobre o Orixá Obaluaiê

Eu nasci em berço de palha – um texto sobre o Orixá Obaluaiê

Por que tanto dói evoluir? 

“A gente só cura aquilo que a gente sabe o nome e, pra dar nome, é preciso sentir” – as entidades que me acompanham sempre dizem essa frase. Acho que eu nunca havia atribuído tanto sentido a ela até sentir o peito doendo em visualizar a cena do alto de uma montanha, enquanto várias lápides gravavam todas as vidas pelas quais eu já vivi. 

Amaci de Obaluaiê, traduzo: 

Amaci – Lavagem do Orí (coroa, topo da cabeça) com ervas imantadas na força daquele Orixá. 

Obaluaiê – Orixá das palhas, ancião, que carrega a cura e a transmutação em seus mistérios. 

Esse Amaci especificamente é realizado pelos dirigentes em nós, alunos, como forma de adentrar o estudo do Orixá. 

Voltemos ao meu Pai, Obaluaiê. 

Atotô, Obaluaiê, força cuja energia me tem como tua filha. O tempo chuvoso de hoje combina com a melancolia da sensação que sinto agora, enquanto suas ervas ainda estão em minha coroa. O pano amarrado com força, para que seu chá não caia enquanto durmo, não dói mais que a dor que dói a cabeça depois de tanto choro derramado. 

Olhos cerrados (e inchados).

Silêncio.

Chuva lá fora. 

Silêncio. De novo.

A humildade está no silêncio que habita a quietude de ser quem és. 

Assim que o Amaci foi colocado em mim, me senti rancorosa, amargurada. “Ué, meu Pai, não era pra ser emocionante? Todo mundo tá chorando, tu está aqui na minha coroa, cadê minha emoção?” “Calma, menina.” – uma voz disse dentro da minha cabeça. “Escreve, vai. E, quase como numa psicografia, fui clareando meu pensar transformando em palavras o que eu senti enquanto a minha Mãe (de santo) passava o Amaci nos demais filhos (e são muitos, hein… Então tive um bom tempo para me transcrever no meu silêncio). 

No meu texto, eu me aquietei. “Quieta, menina.” – a voz repetiu. “Seu berço foi feito de palha. Podes ter sido rainha, princesa, cigana, sábia, mas, se estais aqui, é porque vais tentar de novo. E não que das demais vezes houve falhas no caminho, mas houve defeitos. Desses que tu carregas ainda hoje e carregava ainda quando era menina. Defeito que te faz parte. As lápides não carregarão junto as gravuras dos nomes daqueles que tu chamas de amigo. É o teu, sozinho, que estará lá fazendo cena. Se há alguém que deva sofrer pelos seus defeitos, és tu.” “Mas, Vô, como eu faço isso?” “Se aquieta, menina. Escuta a humildade que existe na simplicidade de ser.”

Chove lá fora. 

Tem uma brisa gelada refrescando o calor que a primavera trouxe. Minha cabeça dói. Eu penso na minha morte. 

Será a morte a consciência que me trouxe a crise da média idade? Será a morte a grande incentivadora do meu viver? 

Silêncio. 

Chove lá fora. 

Meu coração dói pela prepotência de achar que em algum momento eu soube de algo. Não soube, nem quando planejei, nem quando deixei acontecer. A vida prega essas peças na gente, né? Polaridade, positivo e negativo. Os dois extremos que andam lado a lado e habitam nosso pensamento e as nossas ações. Ninguém é bom nem está bem o tempo todo. Ninguém é mau e nem está mal o tempo todo. E aqueles que ousarem ser mais um que o outro, perdem a noção da vulnerabilidade que é estar vivo. 

Me cobri com pano branco, as luzes foram apagadas e a curimba deu o toque: “Atotô, Obaluaiê.” O choro sentido cai enquanto a coluna se abaixa, as mãos fecham suavemente cravando as unhas nas palmas. O pé bate com força no chão como se um animal selvagem estivesse pisando por mim. A coluna dói. O choro sai. A cada pisada forte o chão estremece. A energia dele dança com o meu corpo enquanto eu me curo da dor que ainda não tem nome, mas que dói, dói como dói a coluna. Um ancião. Uma energia que invade a sobriedade da maturidade. A lágrima escorre. Meu corpo dança. 

A curimba deu o toque, tá na hora de voltar. 

Volto para mim com a sensação de reencontrar a inferioridade do meu berço de palha. Me sinto melancólica. Chove lá fora. Será que eu me perdi para chegar até aqui? 

Que eu nunca me esqueça de que,

do lugar de onde eu vim,

a única abundância era ser feliz.

Que eu nunca me esqueça da família que deu meu sobrenome. 

Que eu nunca me esqueça da minha doce Vó Alzira. 

Que eu nunca me perca, mas, caso isso aconteça, que eu saiba olhar para o alto e enxergar o cruzeiro que sempre vai direcionar os meus caminhos e volta para casa. 

Atotô, meu pai Obaluaiê.