Intolerância religiosa: fundamentos jurídicos

Intolerância religiosa: fundamentos jurídicos

FOTO: Karina Amorim

Tratar sobre um tema tão recorrente na história do nosso país, sendo advogada, umbandista e filha de Xangô e Ogum, traz a profundidade do porquê serem inaceitáveis as atrocidades ocorridas, até os dias de hoje, contra pessoas das mais diversas religiões, principalmente a crueldade e violência contra os adeptos às religiões de matrizes africanas, com enfoque para a Umbanda.

O embasamento primordial para tratarmos sobre intolerância religiosa se encontra no Art. 5º, inciso VI da Constituição Federal de 1988, que diz:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. (Constituição Federal, Brasil, 1988 – grifos nossos)

Destaca-se que a Constituição Federal (“CF”) é a Lei Maior do nosso país, ou seja, não existe outra lei superior a ela no território nacional. A CF foi elaborada após um período tenebroso em nossa história: a Ditadura Militar (1964-1985). Com isso, a nova Lei fundamental buscou estabelecer valores e diretrizes básicas, conhecidos como princípios fundamentais da Constituição Federal, com intuito de orientar a aplicação da lei; garantir a independência dos poderes; assegurar o tratamento justo e igualitário e, o mais importante, proteger os direitos individuais e coletivos de todos os cidadãos.

Assim, foi estabelecido um Estado Laico (sem religião institucionalizada), pois, consoante à Constituição Federal, o Estado deve proporcionar a seus cidadãos um ambiente de plena compreensão religiosa, abolindo a intolerância e o fanatismo, não podendo existir nenhuma religião oficial, devendo, porém, prestar proteção e garantia ao livre exercício de todas as religiões.

Buscando elucidar com um caso prático a premissa que ensejou a criação dessa garantia fundamental, podemos trazer a história do Médium José Arigó (José Pedro de Freitas, Congonhas do Campo – MG, *18 de outubro de 1922 a +11 de janeiro de 1971), um médium brasileiro que desenvolveu suas atividades espirituais em Congonhas, MG, durante cerca de vinte anos, tornando-se conhecido nacional e internacionalmente pelas cirurgias espirituais que realizava e eram atribuídas a um espírito que se denominava Dr. Fritz.

No período em que atuou, Arigó sofreu forte desaprovação da Igreja Católica e três processos promovidos pela Associação Médica de Minas Gerais, sob a acusação de prática de curandeirismo e pelo exercício ilegal da medicina. Apesar de José Arigó ter falecido em 1971, seu legado deixou a necessidade de a legislação resguardar toda a população no exercício de seus cultos religiosos, com a proteção aos locais e às liturgias, sendo isso finalmente perpetrado com a Constituição de 1988.

Isso deu maior visibilidade ao espiritismo e à Umbanda, que buscam até os dias de hoje adequar seus rituais ao cristianismo, a fim de não sofrerem perseguições e terem maior aceitação por toda a população. Na Umbanda, esse fenômeno fica evidente com o sincretismo religioso dos Sagrados Orixás aos Santos Católicos, que, além de buscar facilitar a propagação da religião, foi, e ainda é, uma forma de minimizar ataques de praticantes de outras religiões. 

Ocorre que ainda são milhares os registros de violações a esse direito em todo nosso país, sendo São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia os Estados com mais ocorrências do que denominamos “Intolerância Religiosa”, definida pelo babalorixá e pesquisador Sidnei Nogueira da seguinte forma:

(…) A expressão “intolerância religiosa” tem sido utilizada para descrever um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas às crenças, rituais e práticas religiosas consideradas não hegemônicas. Práticas estas que, somadas à falta de habilidade ou à vontade em reconhecer e respeitar crenças de terceiros, podem ser consideradas crimes de ódio que ferem a liberdade e a dignidade humanas (…) (Sidnei Nogueira, Intolerância Religiosa, Editora Jandaíra, 2020).

A maior parte das ocorrências é de atitudes ofensivas contra praticantes de religiões de matrizes africanas e ultrapassam a exaltação verbal com palavras pejorativas, levando à agressão física, ensejando diversos casos que acabaram em morte, sendo os demais casos marcados pela diversidade religiosa, em decorrência do alto índice de imigração existente em nosso país.

Nesse cenário, buscou-se aprimorar a aplicação da Lei Pátria, a fim de dar efetividade à garantia disposta no Art. 5º, inciso VI, a Lei Federal nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007 e se instituiu o “Dia Mundial da Religião” no dia 21 de janeiro, após a morte da Iyalorixá Mãe Gilda (em 2000, por problemas de saúde decorrentes do profundo abalo emocional sofrido, após sua imagem ser usada de forma perniciosa por extremistas religiosos evangélicos), com o objetivo de promover o diálogo inter-religioso, a tolerância e o respeito.

Um marco promissor nessa luta foi aprovação da Lei nº 14.532 de 11 de janeiro de 2023, que trouxe alterações que endureceram a pena de quem pratica crimes de intolerância religiosa, com a inclusão do parágrafo 2º – B, ao Art. 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989.

Desde então, é crescente o número de denúncias de violação desse direito básico, mas ainda é ineficaz a atuação do Estado para efetivamente proteger os cidadãos brasileiros quanto a esta garantia. Isso ocorre pelos mais diversos motivos, que percorrem desde a ausência de ensino religioso adequado nas escolas, passando pela ausência de políticas públicas contínuas em busca de dar visibilidade para todas as religiões, até a falta de aplicação correta da legislação vigente.

Dessa forma, a luta para proteger e garantir a liberdade religiosa preconizada em nosso ordenamento jurídico é longa, de modo que todas as vítimas desse crime devem fazer denúncias seja pelo Disque 100 (canal de denúncias contra os direitos humanos do Governo Federal), seja pelo registro de boletim de ocorrência.

Outras formas de combate a esse crime incluem canais como a Ouvidoria de Direitos Humanos de cada Estado, a Delegacia de Racismo e Crimes de Intolerância (presente em alguns estados), além da Defensoria Pública e o Ministério Público. Além da busca pela visibilidade de sua religião, a fim de desmitificar conceitos errôneos que atribuíram a ela pelo desconhecimento de seus fundamentos, esse é um dos mais importantes pontos para sua prevenção*! 

*Nota da editora: aliás, objetivo do presente jornal, ajudando na comunicação do que se trata, de fato, a Umbanda!

Esposa, umbandista, taróloga, advogada e terapeuta em formação. Sou filha da Rainha do Mar e do Senhor dos Caminhos. Persistente, resignada, sincera, responsável, disponível e carinhosa. Ajudar e fazer o bem sempre porque o amor que espero do mundo começa em mim.