Deixar ir

Deixar ir

Desde de manhã, eu senti a presença dela. Da minha vózinha. Eu sabia que ia ter Gira de Pretos Velhos naquele dia então estava curtindo o fato dela estar mais pertinho Eu senti uma calmaria de tempos em tempos, um acalento no coração independente do quanto a reunião que eu estivesse fosse tensa. 

Quando chegou a hora de sair de casa, tive o impulso de pegar as coisas dela: pêndulo, óleo de coco, pratinho, cigarro… Mas ignorei. Achei que era coisa da minha cabeça, porque eu estou como cambone, ou seja, eu não estou como médium de atendimento, eu não a receberia naquele dia. No fim das contas, peguei somente o terço e fui para o Templo Sol de Aruanda trabalhar. 

No momento em que pisei na casa, a Mãe Carol estava falando que todo mundo que se sentisse à vontade poderia incorporar naquele dia. Eu na minha cabeça: “oi? Como assim?”, nisso senti a Vó mais perto do que nunca e ela me disse “vamos, menina?”. Eu fiquei com muito MEDO. Eu já incorporei anteriormente, mas sempre nas aulas de desenvolvimento, nunca em gira aberta pública para cuidar dos outros. 

Conforme eu fui me organizando e perfilando para começar a abertura da gira, a Vó foi conversando comigo, me acalmando, me dizendo que se eu não quisesse, nada aconteceria – e que tava tudo bem. Mas ela também me dizia que eu e ela estávamos prontas e treinando há muito tempo para esse momento. 

Aos poucos, fui me acalmando e quando a curimba tocou para os anciões, eu fui às lágrimas e tive a certeza de que sim, eu estava pronta, minha espiritualidade me chamava. 

Ok, decidido! Peguei dois banquinhos e fui intuindo de pegar velas, o terço… Nessa hora, só ouvi a Vó rir porque ela tinha pedido para trazer as coisas dela. E aí uma lição e uma nota mental para mim: ‘se intuiu, leva – o máximo que vai acontecer é não usar!’. 

Depois do Vô José e Vó Ana chegarem, os demais médiuns receberam o comando para incorporar. Eu me ajoelhei, fiquei bem agachada e encolhidinha. Minha Vó Cambinda veio se aproximando, se aproximando, fui sentindo um tremor, uma emoção, aos poucos minha consciência foi ficando quieta. Na minha mente, eu fui parar em uma casa bem simples e a Vó estava sentada na minha frente, ela pediu para eu repousar minha cabeça nas pernas dela e posicionou as suas mãos em cima da minha cabeça, fui me sentindo energizada, amparada, amada. Fiquei extremamente emocionada, e ela falou baixinho “vamos começar?”. Neste momento, me levantei, já com a Vó direcionando tudo, sentei no banquinho e comecei a fazer os gestos que a Vó queria, estalos para cá, mirongas para lá, trago em um cigarrinho imaginário aqui, acende uma vela e segura com o pé – e eu beeeem quietinha dentro de mim mesma, só deixando ela comandar tudo. 

Neste momento, o cambone que estava ajudando se aproximou e perguntou se precisava de algo – a Vó quis café com muito açúcar e alguns copos d’água que depois fui entender para o que servia. 

Quando o primeiro consulente se aproximou, a Vó logo fechou meu olho e solicitou carinhosamente para eu me manter assim. Ela cumprimentou a pessoa, pediu licença e começou a fazer uma limpeza. Ela pegou o café (doooooce que só) e deu um gole, pegou a água, molhou suas mãos e começou o trabalho, minhas mãos ficaram extremamente quentes e ela ia passando sem tocar na pessoa – na cabeça, ombros, coração, barriga, joelhos, pés… ela molhava os dedos e fazia uma cruz em cada parte do corpo. Depois, ela pegou o terço e começou a usá-lo como um pêndulo, também passando pela pessoa. Na altura do coração, o pêndulo ficou negativo (ou seja, rodando no sentido anti-horário) e a Vó sentiu a mágoa, raiva e medo da pessoa na hora. Ela seguiu fazendo a limpeza e depois começou a conversar com a pessoa.

  • Como a vó pode te ajudar? 
  • Eu sinto muita raiva, fizeram algo horrível comigo e eu não consigo perdoar, eu quero parar de ter raiva, parar de ter medo do meu agressor, mas não consigo, eu me sinto frágil perto dele (neste momento, a consulente compartilhou o que aconteceu – e eu, lá dentro, comecei a entender o que ela sentia e a dar razão para aqueles sentimentos).

Nesta hora, não sei como a Vó fez, mas ela ficou falando com a consulente e comigo ao mesmo tempo. Ela me disse ‘Menina, você está entrando na frente, deixa a Vó cuidar dela e de você. Me dá a sua licença? Só escute, só sinta, nada aqui é da sua responsabilidade, deixa a Vó, tô aqui para isso‘.

Nesse momento, voltei a ouvir o que a Vó estava falando para ela e essa foi uma das maiores lições que tive na minha vida: 

  • A raiva, o medo, a gente sente mesmo, não tem como parar de sentir, eu não posso te dar um banho para te livrar disso para sempre. O ser humano tem isso, tem sentimentos, tem história, sabia que a Vó já sentiu raiva e medo também? Em uma das minhas andanças na crosta, eu era cozinheira, todos da minha família eram escravos de lá e eu cozinhava com muito grado. Eles fizeram muita maldade com minha filha e meu marido. Eu senti raiva, medo, ódio… Só depois fui entender o porquê daquilo ter acontecido. Filha, você tá vendo só uma parte da história, um corte dela, entende? Isso não quer dizer que você precisa parar de sentir o que tá sentindo, não! Mas significa que isso faz parte da sua evolução, minha filha. Eu vou limpar aqui sua raiva e medo, mas você vai precisar direcionar ela, não briga com esses sentimentos, direcione eles, converse com eles, compreenda. Eles tem um motivo, eles te contam algo [nisso, a Vó pegou uma vela de Exu e explicou para a moça sobre o guardião dela – além de sugerir dela vir na gira de esquerda]. 

Se tem algo que eu tento fazer desde que me entendo por gente é não sentir sentimentos “ruins”. Depois desta gira eu nunca mais olhei a raiva, o medo da mesma forma, comecei a usá-los como bússola. As falas da Vó sempre mudam a minha vida.

Autora: Ana Julia.

Relatos TSA é o autor coletivo do nosso jornal, dedicado a compartilhar histórias vividas ou contadas em nosso espaço sagrado. Seja para narrar momentos de fé, aprendizados espirituais ou manifestações marcantes, este autor simboliza as vozes que ecoam no terreiro, conectando cada relato à essência da espiritualidade e da tradição.