
Banho de Pétalas
A rua é de paralelepípedos, o Sol se encontra ainda baixo, e lança seus primeiros raios do dia revelando um charme especial ao projetar suas sombras sob os parapeitos brancos de madeira lindamente talhados na fileira de casas multicoloridas que se espremem umas às outras em alguma vila provinciana com ares europeus, talvez do século XIX.
Ela exibe seu sorriso encantador enquanto caminha sem pressa alguma em minha direção, demonstra segurança e um ar de satisfação, talvez devido aos rumos que sua vida havia tomado até então.
Seus grandes olhos arredondados sugerem amável gentileza, mas também um quê de cumplicidade semioculta ao apontarem para o cesto de vime que carrega na dobra de seu braço esquerdo.
O longo e rodado vestido de cetim rosa-claro exibe estampa de corações vermelhos que combinam lindamente com seus cabelos castanhos pendendo ao ruivo sob a luz do Sol às suas costas.
Em meio a cena tão exuberante, estranhamente percebo que a minha direita está uma escada de madeira de poucos degraus, em forma de cavalete.
Ela se aproxima, me lança um olhar acolhedor e sobe os primeiros degraus da escadinha, apenas o suficiente para alcançar o topo de minha cabeça sem ter de levantar os braços além de seu peito.
É possível perceber suas mãozinhas finas e delicadas a estenderem-se através dos dedos alongados, mesmo que dentro de suas luvas brancas, também de cetim, que quase alcançam os cotovelos.
Ela coloca sua mão direita dentro do cestinho que traz consigo e de lá recolhe um punhado de pétalas de rosas, da mesma cor de seu vestido rosado, as quais passa a despejar sobre minha cabeça em movimentos circulares.
Sinto suas bênçãos se derramarem juntamente com as pétalas sobre todo meu corpo e agradeço extasiado.
Ela apenas sorri, desce os degraus e, sem desviar seus olhos dos meus, caminha lentamente a minha frente em direção agora ao lado esquerdo de meu corpo.
Neste momento, ao meu lado direito a cena ensolarada permanece tal qual está descrita, enquanto que todo o lado esquerdo a partir do ponto central de minha visão agora se encontra em total escuridão. Não é possível identificar qualquer objeto, senão a total ausência de luz.
E conforme ela cruza diante de mim, a cena que se desenrola perante meus olhos começa a sofrer uma transformação brutal, e ainda assim nada parece ser capaz de fazer com que ela perca sua graça em momento algum.
A partir dos pés em direção à sua cabeça e do lado esquerdo de seu corpo em direção ao lado direito, não apenas suas vestimentas como também sua aparência, sofrem gradativamente uma profunda mutação, como se ela trouxesse à realidade uma dimensão totalmente distinta da que nos encontrávamos há pouco, e agora houvesse se tornado uma outra pessoa apenas na aparência, porém mantendo sua essência intocada.
Começou pelos sapatos de couro que, de vermelho, passaram ao preto.
Logo na sequência foi a saia de seu vestido, que fez parecer como se milhares de borboletas que antes mantinham suas asas abertas e rosadas, agora passaram a fechá-las revelando, em onda, seu lado externo, totalmente negro.
Em seu torso se revelou um sensual corpete vermelho, apertado por cordões negros e decorado com rendas da mesma cor.
Sua pele, já bem clara, porém rosada, empalideceu ainda mais, seus cabelos se tornaram negros como a noite e ganhou também uma maquiagem estilo steampunk que acabou por sepultar aquele ar que antes sugeria uma doçura ingênua para dar então lugar a uma sensualidade vibrante e avassaladora.
Suas luvas, agora de renda escura, já não mais ocultavam os dedos das mãos, e em lugar do cesto, segurava agora um leque negro com rendas vermelhas com o qual passou a abanar o rosto enquanto sorria voluptuosamente.
Ela estava totalmente transformada e, ainda assim, a reconhecia como sendo a mesma pessoa, tão bela quanto antes, embora tratarem-se de belezas diametralmente diferentes.
E sem que houvesse mexido seus lábios nem um milímetro sequer, sua voz irrompeu em minha mente dizendo:
“Não se preocupe, vou cuidar de você, saiba que sou Maria Quitéria!!!”
Sou aluno da turma de desenvolvimento mediúnico de quinta-feira no TSA e, embora este relato possa parecer ter sido extraído de um conto aleatório de ficção, se trata, na verdade, de uma experiência vivida tal qual relatada aqui durante uma aula sobre Pombagiras em meados de 2024.
Este foi meu primeiro contato consciente com Dona Maria Quitéria, na verdade com qualquer Pombagira, pois até há bem pouco tempo nunca havia sequer imaginado que poderia existir uma delas que fosse a me acompanhar os passos, talvez devido aos pré-conceitos que trazia comigo até que o contato com estas entidades durante as giras na umbanda e o conhecimento adquirido em aulas trouxessem luz à esta questão.
Para esta aula os Pais de Santo da casa (pai Paulo e mãe Carol Zanin), intuídos ou talvez diretamente orientados pela espiritualidade, trouxeram uma maravilhosa meditação guiada que nos conduziu a abrirmos nossos corações e mentes a esta maravilhosa entidade que tem como um de seus principais aspectos, trabalhar o equilíbrio de nosso emocional.
Deixo aqui minha eterna gratidão pela experiência vivida e minha saudação à toda linha das Pombo-Giras.
“Laroyê Pombo-Gira!!!”
“Laroyê Dona Maria Quitéria!!!”
Ilustração: Mayara Assis
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