O chamado da ancestralidade 

O chamado da ancestralidade 

Minha bisavó Hortência era benzedeira e cuidava da igreja da Vila Santa Catarina, quando tudo ali ainda era terra. Meu pai conta, emocionado, sobre as lembranças de infância, quando a família ia ajudar a bisa a lavar a igreja.

Minha avó Delfina sempre buscou a espiritualidade, até que encontrou a Umbanda e começou seu desenvolvimento mediúnico no Templo de Umbanda Caboclo Pena Verde, na década de 60. Completou sua passagem naquela casa e, quando chegou a hora de cumprir a missão sacerdotal, fundou o Templo de Umbanda Caboclo Pena Roxa em 1980.

Eu cheguei no ano de 1985 e tenho muitas lembranças das Festas de Cosme e Damião, num salão de festas bem grande e que ficava completamente cheio de consulentes em busca da alegria das crianças. Lembro que nos fundos da casa da vó tinha um quarto onde ficavam as lindas imagens e altares. Eu gostava de entrar lá escondida, sentava-se no banquinho de pretos velhos e comia as pipocas de Obaluaiê.

Das muitas vezes em que a vó me benzeu, eu me lembro de uma vez, já aos 18 anos, em que ela disse: “Se essa menina entrar num terreiro, ela trabalha no mesmo dia.”

Eu não sabia muito sobre Umbanda e fiquei com medo. Passei a maior parte da vida adulta dizendo que isso era uma escolha e que eu escolhi não me desenvolver. Mas a Umbanda nunca deixou de aparecer na minha vida. Sempre tive amigos que me falavam sobre Umbanda; sempre senti muito forte uma conexão com os pretos velhos e os caboclos.

Em 2007, minha avó começou a apresentar sintomas de Alzheimer e aos poucos parou de trabalhar com as entidades. Foi nessa fase da vida que fui mais próxima dela. Ela já não podia mais me ensinar sobre a Umbanda, mas me ensinou muito sobre ela e a trajetória de vida, como ela veio para São Paulo, como conheceu meu avô Donato, já falecido.

Eu, que sempre fui um furacão de emoções, saí da casa dos meus pais para morar sozinha em 2010. Aos 25 anos, simplesmente comecei a pintar sem nunca antes ter feito. Junto com as pinturas veio o despertar da mediunidade e, como eu vivia só, me perdi na vida e na minha própria solidão. Foram 6 longos anos de depressão, um dos momentos mais difíceis. Eu nunca cheguei a tentar interromper a vida, mas eu pedia, implorava que eles me levassem de volta.


No meio dessa escuridão, eu fui morar no mesmo prédio da minha vó. Tenho certeza de que teve o dedinho das entidades dela e das minhas nessa mudança. Enquanto o Alzheimer avançava, eu conseguia me manter viva perto dela. Meu pai, muito próximo de mim, notou o buraco em que eu estava e me resgatou, me ajudou em todos os passos na saída da depressão, junto de minha mãe e minhas irmãs, que me apoiaram muito. Foi quando eu comecei a frequentar o terreiro de um amigo do meu pai, o Agrupamento Espiritualista Dever, Amor e Disciplina – Caboclo Tupinambá. Aos poucos, fui dando pequenos passos, um de cada vez, até que estava pronta para retomar a vida.

No dia 5 de agosto de 2022, minha vó Delfina desencarnou. Eu dormi tão profundamente naquela noite, que ninguém conseguiu me acordar para dar a notícia. Tenho certeza de que eu estive ao lado dela nesse momento.

Pouco tempo depois eu senti um chamado muito grande no coração. Nunca na vida imaginei que sentiria uma vontade tão grande de seguir os passos de minha avó. Já estava há muitos anos sem pintar e resolvi voltar. A mediunidade explodiu novamente, era hora de aceitar minha caminhada. Pouco tempo depois estava frequentando um desenvolvimento mediúnico, cheguei a entrar para uma corrente. Mas com o tempo e com a chegada dos guias eu fui sentindo um chamado muito forte para a Umbanda Sagrada, enquanto minha fé era testada o tempo todo.

Hoje, sou grata por todos os momentos por que passei, desde os melhores até os piores; são esses momentos todos que me fizeram ser quem eu sou hoje, aos 38 anos. Sinto que estou preparada para a caminhada.
Termino esse relato agradecendo a família do Templo do Sol de Aruanda, que me acolheu em um momento de desespero e me ensina da forma mais bela que a Umbanda é sobre amor.

Paulista típica, Umbandista e artista visual. Aluna em desenvolvimento mediúnico de quinta-feira no Templo Sol de Aruanda. Apaixonada por café, gatos e de agregar pessoas com energia vital.